Porque agora o que mais nos inquieta

Porque agora o que mais nos inquieta
nesta funda ravina onde de rastos
o corpo declinamos suportamos onde o
canto dos pássaros se apresta ao exílio
capaz deste deserto porque agora

aquilo que nos faz voltar os olhos
e não ver além das cores o branco e
o silêncio além da música do sangue
pelos troncos e do frio nos ramos e
nas sebes que ornam o tempo ano a ano

aquilo que agora nos acode é sermos
a voz única que gravata nesta pedra
os sítios da memória os rituais
da espera porque agora reparamos e
nos frutos sentimos já os dentes com

a nova revolta chamada talvez resignação
porque temos é forçoso de aceitar que a
estação que vivemos agora e se eterniza
não é mais do que a única estação.

 

_
▪ Nuno de Figueiredo
(Coimbra, n. 1943)
in “A Única Estação”, Quasi Edições, V.N. de Famalicão, 2003

De que serviria

Aquilo que somos não é aparente,
não podemos explicar o sofrimento
de onde procede este amor.
Mas eu não vim para te dizer
como as sombras mistificam
o mundo: não me perguntes nada.
Tu já és a causa por detrás da máquina
dos dias, se eu for por essa terra fora
será para chamar por ti.

 

__

▪ Rui Pires Cabral
( Portugal 🇵🇹 )
in ”Morada”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2015

O PRÍNCIPE DOS LÍRIOS

O príncipe dos lírios esta noite não vem
Não sei se o espero ainda se me calo até ti
ou me atravessa o passo só o porto onde embarque
rumo ao brilho dessa ilha em águas de ninguém
da manhã em que chegas enquanto a manhã parte
como partem as ilhas quando chega o navio

 

_

▪ Miguel Serras Pereira
( Portugal 🇵🇹 )

 

CAIXA DE CHOCOLATES

Era uma desbragada comédia:
o pai oferecia caixas de chocolates
e a empregada de limpeza comia-os –

pensava-se que era uma oferta de amor,
mas ela ensinou-me que os presentes dos homens
servem para envaidecer o paladar da solidão

também eu os comi como se fossem para mim:
os doces cariavam as bonecas de porcelana
e doíam-me os seus olhos azuis de imobilidade

queria que sorrissem a minha boca suja
com as palavras que havia aprendido
quando encontrei os seus vestidos despenhados

num grande acidente doméstico, num grande
fim de aparelhos de cozinha que se avariavam
consoante o tempo passavam à espera de uma carta

foi assim que aprendi a limpar o silêncio,
à espera do tom certo para começar poemas
sobre essas vis atividades em que as mulheres

se despedem para continuarem a engrandecer as lides,
como se pudessem dizer adeus enquanto aquecem a panela:
e na mesa onde cabem muitos filhos genéticos

tiram-se os lugares suficientes para que o útero,
respire especiarias, um pouco de farinha branca
com que um dia fará as vezes de uma mãe a sós

e quando os créditos do filme passarem sob a sombra,
só a empregada se rirá do derradeiro presente:
o estômago estava cheio de um amor que não lhe era dedicado.

_

▪ Lígia Reys
( Portugal 🇵🇹 )

Para os outros a bola era a meia

Para os outros a bola era a meia
altura, mas a ti batia-te na cara.
E ias muito zangado para dentro
de casa como se eu tivesse feito
de propósito e te tivesse atirado
a bola à cara. Eu era lá capaz de fazer
uma coisa dessas, também já fui
muito pequenino, sabes, chegaram
a levar-me ao psiquiatra, eu não
ia fazer uma coisa dessas. Quando
me apetece atirar a bola contra
alguém, atiro-a contra uma parede
ou uma árvore. O problema
é que nem sempre acerto na árvore
(na parede acerto sempre, porque
é grande) e às vezes, sem querer,
estás a ouvir, sem querer, acerto
em alguém que vai a passar.

 

_

▪ Helder Moura Pereira
( Portugal 🇵🇹 )
in “Eu Depois Inventei o Resto”, Companhia das Ilhas, Açores, 2013

Qualquer coisa de intermédio

 

Se eu fosse o outro,
o do chapéu macio e do bigode
eternizado em cúbico arremedo,
angústia dividida em tantas partes
e óculos redondos,
podia-te contar eu guardador e sonhos

Se eu fosse o outro,
o delicado e bêbedo génio de nós todos,
o que amou estranho e sabia dizer
coisas enormes numa pequena língua
e fraco império,
se eu fosse aquele inteiro
ditado de exageros e exclusões,
falava-te de tudo em ingleses versos

E mesmo se não foi ele quem disse
(e podia até ser, que eram amigos
e o século a nascer arrepiava como já não
o fim) há razão nessa história do pilar
e do tédio a escorrer de um
para o outro

 

__

▪ Ana Luísa Amaral
( Portugal 🇵🇹 )
in “Minha Senhora de Quê”, Quetzal Editores, Lisboa, 1999