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doutora, hoje enviei o poema para a consulta, porque tenho a vida hasteada a meia altura. isto de ser eu, de cara destapada, já inundou muitos dedos na sede. muitas paredes enrugadas. durante a respiração, morre-me outra primavera nos braços e no sono e não sei o que fazer ao pássaro. a ligadura debaixo da pele vai segurando o corpo. e vou-me habituando à dor como árvore corcunda. doutora, eu sou os juros da ansiedade em estátua. o invisível em espaço farto, vazado pelo espírito levado aos bocados. cada pessoa, lugar, beijo, verso. coisa outra acontecida e tardia pela fala. a doação desmembrada, a rotura nos ligamentos pensados, o cansaço à queima-roupa. e esta linguagem toupeira, sem legendas, à procura. continuo a ensaiar no estúdio arcaico da solidão, repetidamente. há nódoas negras no ritmo, mas o casulo dilata o tronco. porque eu prefiro jantar com a morte do que a peste debaixo do tapete. porque a doutora sabe que a cidade da alegria está cheia de polícias contra o azul. em breve darei notícias. em tempo de hemorragia, falar é hospital

 

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▪ Diogo Costa Leal
( Portugal 🇵🇹 )

in “a depressão fala o fogo”, Edições Humus,2023

Manhã de Agosto

Nesta manhã de Agosto
encontrei o papel onde tinha escrito
a idade em que Blaise Cendrars
perdeu a mão direita
e fiquei a sentir a dor
que me atormentava. Não tomei aspirina
nem esqueci a tua carta
de ontem, aquele momento
em que dizes eu querer
arrastar-te comigo “para esse universo
onde a vida é trocada por palavras”.

Tenho lido os poetas
da minha geração. Conheço
o primeiro poema, aquele que inaugurou
a vida, também em mim.
Cansada de ir à praia, à piscina,
procuro livros, uma emoção linguística,
o verso desconhecido.
Guardei uma frase de Musil, na caixa
onde tenho os selos, um minúsculo relógio
que decidi não usar.

Não posso viver sem a música de Schubert,
ou aquela peça de Brahms – tudo isto
são palavras, a vida passa-se lá fora,
o Inverno há-de vir e não poderei
totalmente fugir ao desconforto.

Falava-se de As Túlipas
e começo a entender. Esta música,
estas palavras, a morte na dobra do lençol,
meu frio corpo na penumbra, no paraíso inicial
da anestesia. Perdida a razão no inferno
da dor, a cabeça irreal, meu poema
esquecido na margem do sono. A morfina,
as enfermeiras, tudo o que pudesse
polir o tormento.

E hoje acabei
por tomar aspirina, gastar o rosto,
permanecer em casa.

 

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▪ Isabel de Sá
( Portugal 🇵🇹 )
In “ O Duplo Dividido”, &etc Editora, Lisboa, 1993

DA DIFICULDADE DA BELEZA

A beleza é difícil.

Queria ensaiar uma magia menor
com a consciência de que cada homem tem a sua porção de paraíso
mesmo nos lugares mais adversos.

Mas a minha adversidade é uma paisagem
povoada de medos e de cinzas.
Vejo morte e sofrimento lá longe
e o que me comove está mais perto e é inapreensível.

Penso naquele pátio medieval de uma aldeia da Beira Interior
onde ontem assisti ao prelúdio de uma noite de verão.
O poço negro dos céus. A hera baloiçando ao vento. O cortejo das estrelas.
Um rumor de insectos roendo os interstícios do silêncio.

Poderia enumerar todas as coisas que então preencheram os meus sentidos
e reduzir essa expressão de coisas que desfilam, recebem nomes,
a um falhanço sem limites.

Retomo a pedra fria em que estive sentado naquela noite.
Toco-a com o pensamento até à falaz eloquência da realidade.

Falhar é seguir, novamente, a estrada da atrocidade quotidiana.

Penso em Ungaretti nas trincheiras
recordando os seus rios: o Isonzo, o Nilo, etc.
Há uma fuga nesta indiferença.
São nobres os exemplos
e exemplar a responsabilidade do alheamento.

Vejo um campo devastado dentro de mim,
a torre da Canção erguendo-se sobre as ruínas da tranquilidade
que me cerca.

A beleza é difícil.

Procuro a noite e a solidão num pátio medieval.
Procuro na minha memória esta noite e essa solidão.
É preciso salvar o momento, penso.
E distante no tempo, um outro o salva:
um poeta nomeia os seus rios
numa frente de combate.
A morte envolve-o. Porém, ele assume a ventura da beleza.
Assina o seu rosto junto ao sofrimento.

Com o início desse conhecimento
escrevo: «A beleza é difícil. Pode derrubar-nos, entretanto.»

 

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▪ Luís Quintais
( Portugal 🇵🇹 )
in “A Imprecisa Melancolia”, Editorial Teorema, Lisboa, 1995

DÍVIDA ETERNA

Um dia descerão do céu
os novos anjos com as suas asas
e gravatas
as suas pastas com títulos e ações
do céu
em alta.

Descerão
ouvindo música pop
nos seus auscultadores de prata
e entrarão no templo
a trautear canções
e a exigir-nos os juros
de tudo quanto devemos.

A nós que tudo devemos.

Aqui na terra
como no céu.

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▪ António Quintas Mendes
( Portugal 🇵🇹 )

Apontamento para poesia generativa

fecham-se as cortinas
dos sentidos
desfaço-me no pensamento
e talvez um piano seja o espaço ideal
para uma palavra que não me cabe agora
¿que riso de criança alastrada é este?
a ecoar
entre a saudade de mim
e a morte
brincando ao baloiço arcaico da vida:
alma-sobe
alma-desce
alma-sobe
alma-desce
alma-sobe e um gato na minha língua
a querer saber porque é que nunca prevê as pancadas
alma-desce
e os pés da nudez
descalços
nas arcadas da saudade

és tu?
és tu
quota parte enigmática de mim
na persiana aberta do amanhã
à minha espera
de mão nua
ambos separados por este inverno granítico de ser
dentro do próprio verão de amar,
o palato da substancia crua das coisas
e o piano entre as mãos como cântaro
para a lama do coração na memória esquecida
– amei até enterrar-me com as sementes
e quem me colhe são as cruzes adiantadas
nos expoentes.

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▪ Diogo Costa Leal
( Portugal 🇵🇹 )

DONS DO AMANTE

 

Voz | Dizedor

 

Sobre a tua cabeleira hei-de pôr, para as núpcias,
uma coroa de borboletas com suas
asas pintadas.

Terás de volta ao pescoço flores de abóbora,
em prata,
e a lua que para ti noites e noites forjei.

Andarás pelo povo sobre um cavalo em turquesa.
Um cavalo ardente e leve, animado
pelo meu fogo de amor.

E a teus pés eu lançarei uma pedra quente quente:
o coração onde correm
milhões de gotas de sangue.

 

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▪Herberto Helder
( Portugal 🇵🇹 )