ESTAÇÃO DE BUPYEONG

 

A chuva de primavera cai na estação de Bupyeong.
Na paragem de autocarros do bairro,
uma mulher que coxeia
envolta em plástico branco,
vende flores até altas horas da noite,
dizendo a todos para se transformarem em primavera,
para se transformarem em flores enquanto a vida continua.
Entrega timidamente
ao jovem funcionário da estação de serviço
o último ramo de frésias amarelas,
e sai a coxear
em direção à chuva de primavera que cai branca
no meio das luzes amarelas ao longo da plataforma.
Embarca no último comboio para Incheon Oriental
apertando firmemente a mão
do filho com Síndrome de Down.

 

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▪ Jeong Ho-Seung
( Coreia do Sul 🇰🇷)
Mudado para Português por Jorge Sousa Braga

As palavras começam a ficar velhas

As palavras começam a ficar velhas: têm
dores nas articulações e rangem, de vez
em quando, sem razão; reclamam óleos
e resinas, tempo e açucares mais lentos.

Mas também eu estou velha demais para
oficinas, tão cansada de livros e papéis,
morta por viver outras coisas — por amor,

talvez espreitasse de novo nas mangas do
mundo e escrevesse uma fiada de búzios
no pulso da areia. Mas quantos dos teus
beijos perderia? Perdoem-me os que

ainda esperam por mim. Não sei se volto.

 

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▪ Maria do Rosário Pedreira

Ocupei o dia com pequenas tarefas

Ocupei o dia com pequenas tarefas
Para silenciar um pedido uma súplica
Pintei o velho alpendre consertei a cancela do jardim
Libertei o cão para que perseguisse os pássaros pelo bosque
Recusou-se a partir
Persiste onde não existe caminho
Ao meu lado
Esperando que um vento frio
Dispa de folhas todos os ramos.

 

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▪ Luís Falcão
( Portugal 🇵🇹 )
in “Pétalas Negras Ardem Nos Teus Olhos”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007

A MÃE ASSOMA À PORTA 

A mãe gosta que lhe escrevam
quando chega o seu dia,
escrever é uma forma de impedir
a ruína da casa

A casa continua nítida apesar do tempo
e todas as coisas estão
nos seus lugares

A mãe caminha no meio dessas coisas
e tudo se mantém como sempre foi
já faltam algumas telhas,
isso é verdade
mas a casa permanece intacta

A mãe assoma à porta
e olha não se sabe para onde,
em que pensará a mãe
quando assoma à porta?

Nesse momento
tudo é feito de silêncio,
só assim a mãe é visível
duma forma tão nítida

Se houvesse qualquer barulho
a mãe não seria vista
tenho a certeza,
a mãe vê-se tão bem no silêncio

Eu acho que acontece o mesmo
com tudo o que é importante

 

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▪ Nuno Higino
( Portugal 🇵🇹 )

É BOA A GUERRA

 

Não chores, rapariga, é boa a guerra.
Lá porque o teu rapaz ergueu as mãos ao céu
E a galope o cavalo se perdeu,
Não chores, não.
É boa a guerra.

Tambores de regimento rufam roucos,
E esta gente sequiosa de lutar
Nasceu para a recruta e p’ra morrer.
A inexplicada glória os sobrevoa,
É grande o deus da guerra, e é seu reino
Um campo com milhares a apodrecer.

Não chores, criancinha, é boa a guerra.
Porque o teu pai tombou na lama da trincheira,
Esfacelado o peito e já sem vida,
Não chores, não.
É boa a guerra.

Bandeiras crepitando esvoaçantes,
Águias douradas, rubras! Esta gente
Nasceu para a recruta e p’ra morrer.
Mostrai-lhe as eficácias do massacre,
Dizei-lhe a excelência de matar,
De um campo com milhares a apodrecer.

Mãe cujo amor é qual botão mesquinho
Na esplêndida mortalha do teu filho,
Não chores, não.
É boa a guerra.

 

Stephen Crane
in Poesia do Século XX, antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena,

 

BANQUETE

Eles comem com as mãos cheias,
mastigam cifras, engolem promessas,
enxugam a boca com páginas de leis.

Nos copos, brindam ao progresso,
enquanto o povo com fome,
troca dignidade por migalhas.

Os bolsos são profundos,
os discursos, vazios.
Quando a conta chega,
não há culpados—
é o povo  que paga.


Ana Soares

POEMA DOS MOTORISTAS OFICIAIS

 

Encontram-se um pouco por todos os lugares.
Ora fumando,
orando pelos filhos junto a um deus
secretariado por magníficos
patrões.
De fato azul e gravata preta
de anel cachucho e jornal da bola,
o rabo habituado aos bons cabedais
pousado no capot ultra-reluzente.

Trazem da província em cada bolso do corpo
e estendem olhos julgadores às mulheres solitárias
de cigarro na boca em plana rua.
Às vezes são quatro ou cinco à espera do final
de um conselho em pleno parto,
de uma portaria inacabada
ou de uma reunião de economia mística.

Derramam no passeio
o ócio inexplicável de rústicos fiéis
e contam anedotas num bocejo amarelo de melancolia.
Quem lhes dera a reforma, a courela da mãe,
ou num sonho longínquo
essa noite sem lua em que engravidaram
a prima por descuido.

Sinto por todos eles um sentimento soturno
e muito gostaria
que Cesário os conhecesse
ao passear sozinho
pelas novas avenidas ao anoitecer.

 

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▪ Armando Silva Carvalho
( Portugal 🇵🇹 )