NÚBIO INVERNO DE LÁGRIMAS

Noite violácea e chuvosa.
Chove – as gotas, grossas e pesadas – sem cessar.
Os vidros do quarto estão todos embaciados.
O exílio interior é o nosso refúgio.
Fugimos com medos, passamos a percorrer labirintos.
Cá dentro, o frio em mil pedaços.
Chove.
Chove.
A criança que abusaste, num esconderijo,
nunca a tiveste, Padre.
Chove.
Chove.

Não conheço justiça que te liberte.

 


▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “A Casa da Memória”

 

É a minha vez

Estou aqui,
agitando os baldes que a chuva
encheu durante a madrugada
para evitar que o silêncio faça mais vítimas.
Fui colocar essa peruca de pardais e vim
a voar até aqui acima,
e agora não sei como inventar as escadas para descer.
Dizes que é apenas uma questão de tempo,
que só foste renovar o contrato para não ficares assim com
o pé no vazio.

Já nem reparas,
mas estou aqui como um animal pré-histórico
a ficar enternecido com a bailarina
da tua caixa musical.
Aguardo, ainda, como qualquer vulcão lunar
o fim da era glaciar.

Passo a mão pelos cabelos molhados,
chove,
outra vez.
Há ecos de corpos rasgados
na gargalhada dos palhaços
e as hienas começam a ficar impacientes:
é tarde mas sobretudo urgente.

Deixa-me pôr esse vestido
com corte jovem demais para o meu corpo em queda.
É a minha vez.
Sei o papel de cor.
Mas não chego para uma história.

 


▪ Golghona Angel
( Portugal 🇵🇹 )

 

DEZ TANKA

the first wind
of autumn and
still no moon
to carry me
into winter

primeiro vento
de outono
e lua nenhuma
para me levar
até ao inverno

*

there you are
midway through a
dream, telling
me the moon is
made of paper

ali estás
a meio de um
sonho, dizendo-me
que a lua é
feita de papel

*

they play cards
on the floor of the
wet market,
sandwiched between
the cries of fish

jogam às cartas
no chão molhado
do mercado,
entre os gritos
dos peixes

*

twilight. . .
passersby paint
the walls of
the cemetery
with shadows

crepúsculo…
transeuntes pintam
com sombras
as paredes
do cemitério

*

she acts
as if darkness
was more than
a lover walking
on telephone lines

ela age
como se a escuridão
fosse mais do que
um amante a caminhar
por linhas telefónicas

*

the look she
gave me when i
handed her
a bag of peanuts
nailed to the sky

o olhar que ela
me deitou quando
lhe entreguei
um saco de amendoins
pregado ao céu

*

almost 60,
this gnarled tree reminds
me of an old
man riding a bicycle
in his underwear

quase 60,
esta árvore retorcida
lembra-me um velho
em roupa interior
a andar de bicicleta

*

this breeze
and the song sung
on limbs
by small leaves
pretending to be birds

esta brisa
e a canção cantada
nos ramos
por folhas novas
fingindo serem pássaros

*

a shooting
star races past
me on its
way to another
man’s pocket

uma estrela
cadente passa
por mim depressa
a caminho do bolso
de outro homem.

*
what is winter
to patients waiting
in line to
use the hospital
ward’s one toilet?

o que é o inverno
para os doentes na fila
à espera de usar
a única casa de banho
da enfermaria?

 

_

▪ Robert D Wilson
(U.S.A. 🇺🇲)
Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho _ (Poeta, Tradutor e Matemático)

MESMO SEM DIZER NADA

NITUP matou-se. Agora está calado
aos pés de sua mãe.
As pedras cresceram como rosas negras no jardim do palácio.
As meninas, com máscaras,foram levadas
para a Grande Prisão.
Com elas taparam a boca de Deus.

 


▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
In “O Livro do absurdo”

CÃES PRESOS

É possível que este cão preso ladre
às estrelas que o aturdem como se fossem sinais
e que esteja a uivar a quem o deixou de vigia
a ninguém, numa casa abandonada.

Os vizinhos queixam-se porque não conseguem dormir,
ouvir telefonia ou lavar os automóveis.

Enquanto isso eu imagino que ele tem caninos azuis
como o amor ou a morte, e imagino-o altivo
como alguns homens, como tantos cães.

Porque o seu ruido tem algo de delicada insensatez
e de agonia, e esse som acompanha-me e persegue-me.
Porque o seu latido impõe-se sobre as vozes
desafinadas e rançosas das pessoas
misturadas como no fundo de uma panela.

E porque é possível que eu esteja preso também,
mas sem convicção para ladrar e uivar
agora que sinto finalmente que me deixaram sozinho
vigiando uma luz quase desabitada.

 

_
▪ Néstor Mux
( Argentina 🇦🇷 )
in “De Perros atados/ Delicada insensatez”
Mudado para português por – Pedro Mexia (Poeta, cronista e crítico literário português)

Proyecto de un beso

Poema de Leopoldo María Panero  | Voz de Silvana Ortega 

 

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra.

Te mataré mañana poco antes del alba
cuando estés en el lecho, perdida entre los sueños
y será como cópula o semen en los labios
como beso o abrazo, o como acción de gracias.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra
y en el pico me traiga la orden de tu muerte
que será como beso o como acción de gracias
o como una oración porque el día no salga.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y ladre el tercer perro en la hora novena
en el décimo árbol sin hojas ya ni savia
que nadie sabe ya por qué está en pie en la tierra.

Te mataré mañana cuando caiga la hoja
decimotercera al suelo de miseria
y serás tú una hoja o algún tordo pálido
que vuelve en el secreto remoto de la tarde.

Te mataré mañana, y pedirás perdón
por esa carne obscena, por ese sexo oscuro
que va a tener por falo el brillo de este hierro
que va a tener por beso el sepulcro, el olvido.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y verás cómo eres de bella cuando muerta
toda llena de flores, y los brazos cruzados
y los labios cerrados como cuando rezabas
o cuando me implorabas otra vez la palabra.

Te mataré mañana cuando la luna salga,
y al salir de aquel cielo que dicen las leyendas
pedirás ya mañana por mí y mi salvación.

Te mataré mañana cuando la luna salga
cuando veas a un ángel armado de una daga
desnudo y en silencio frente a tu cama pálida.

Te mataré mañana y verás que eyaculas
cuando pase aquel frío por entre tus dos piernas.

Te mataré mañana cuando la luna salga
te mataré mañana y amaré tu fantasma
y correré a tu tumba las noches en que ardan
de nuevo en ese falo tembloroso que tengo
los ensueños del sexo, los misterios del semen
y será así tu lápida para mí el primer lecho
para soñar con dioses, y árboles, y madres
para jugar también con los dados de noche.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra.

 

_

▪ Leopoldo María Panero
( Espanha 🇪🇸 )

 

 

Receita para fazer um poema dadaísta

Pegue num jornal.
Pegue numa tesoura.
Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Seguidamente, tire os recortes um por um.
Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco.
O poema será parecido consigo.
E pronto: será um escritor infinitamente original e de uma adorável sensibilidade, embora incompreendido pelo vulgo.

 

▪ Tristan Tzara
( Roménia 🇷🇴)

 

 

DO MAR

DO MAR

Ficaram vestígios do mar em teu coração.
O vento quer soprar
numa criança
com uma navalha na mão.

 


▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “O guardador de segredos”
— inédito —

 

OF THE SEA

There were glimmers of the sea in your heart.
The wind wants to blow itself
through a child
with a blade in its fist.

_

▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “The Keeper of Secrets”
— unpublished —

 Translation by Lesley Saunders 🇬🇧 Poet and educationalist