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doutora, hoje enviei o poema para a consulta, porque tenho a vida hasteada a meia altura. isto de ser eu, de cara destapada, já inundou muitos dedos na sede. muitas paredes enrugadas. durante a respiração, morre-me outra primavera nos braços e no sono e não sei o que fazer ao pássaro. a ligadura debaixo da pele vai segurando o corpo. e vou-me habituando à dor como árvore corcunda. doutora, eu sou os juros da ansiedade em estátua. o invisível em espaço farto, vazado pelo espírito levado aos bocados. cada pessoa, lugar, beijo, verso. coisa outra acontecida e tardia pela fala. a doação desmembrada, a rotura nos ligamentos pensados, o cansaço à queima-roupa. e esta linguagem toupeira, sem legendas, à procura. continuo a ensaiar no estúdio arcaico da solidão, repetidamente. há nódoas negras no ritmo, mas o casulo dilata o tronco. porque eu prefiro jantar com a morte do que a peste debaixo do tapete. porque a doutora sabe que a cidade da alegria está cheia de polícias contra o azul. em breve darei notícias. em tempo de hemorragia, falar é hospital

 

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▪ Diogo Costa Leal
( Portugal 🇵🇹 )

in “a depressão fala o fogo”, Edições Humus,2023

Apontamento para poesia generativa

fecham-se as cortinas
dos sentidos
desfaço-me no pensamento
e talvez um piano seja o espaço ideal
para uma palavra que não me cabe agora
¿que riso de criança alastrada é este?
a ecoar
entre a saudade de mim
e a morte
brincando ao baloiço arcaico da vida:
alma-sobe
alma-desce
alma-sobe
alma-desce
alma-sobe e um gato na minha língua
a querer saber porque é que nunca prevê as pancadas
alma-desce
e os pés da nudez
descalços
nas arcadas da saudade

és tu?
és tu
quota parte enigmática de mim
na persiana aberta do amanhã
à minha espera
de mão nua
ambos separados por este inverno granítico de ser
dentro do próprio verão de amar,
o palato da substancia crua das coisas
e o piano entre as mãos como cântaro
para a lama do coração na memória esquecida
– amei até enterrar-me com as sementes
e quem me colhe são as cruzes adiantadas
nos expoentes.

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▪ Diogo Costa Leal
( Portugal 🇵🇹 )

O Trabalho da Formiga

 


Poema e Voz | Diogo Costa Leal
Guitarra | João Canedo

 

As formigas são eussociais
Pequenas reticências terrestres

As formigas são a força mais coesa esquecida pelos homens

Cada pequena formiga
segura as suas gerações inteiras num único ninho de abundância secreta
cada pequena formiga
cuida de patas dadas alastradas a uma só unidade
a prole insuperável, porque longe das coroas maiores que as formigas.
Cada pequena formiga divide e ausculta a sua minúscula indispensável tarefa
Cada pequena formiga é reprodutora
E outra é operária
Todas na sua tarefa sanguínea da sabedoria do verbo mais contínuo
Suor longevidade impenetrável inquestionável sob os nossos pés
E nós
Os monstros homens
A atropelarmo-nos a cada novo dia
Como grandes e tenebrosas formigas amnésicas
Homens ausentes dos próprios homens
Pisando os homens como quem pisa a negligência com o ombro que esbate na pressa
De um outro homem passado.

Vejo uma pétala sozinha a caminhar.
Não. É uma formiga que a leva.
A pétala é bem maior que a formiga e a formiga não se detém:
Chama mais uma formiga e outra e outra
Mil formigas a não descansar enquanto a pequena grande pétala não for levada
Para dentro de um pequeno buraco
Porta para uma grande vida geral.

Uma nova formiga sobe a minha mão
Faz-me amar a coerência perfeita da sua espécie…
Quem me dera que ela me chamasse as amigas
E me servisse pétalas à sua mesa..

Escrevo sobre o prolongamento invisível das formigas

Ah formigas pequenos deuses da derradeira coesão inquebrável

E nós, os homens
Essa longa interrogação egoexcêntrica
Cantamos quando devíamos suar.
Suamos demais quando devíamos cantar

Desço a mão
E uma formiga regressa a casa

E fica-me um formigueiro nos dedos
Prontos enfim
Para uma escrita de novo mais animal mais incansável
Uma escrita que leve um pequeno grão de areia
Ou uma pequena pétala
Ao amor abandonado da humanidade.

 

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▪ Diogo Costa Leal
( Portugal 🇵🇹 )