VOZES NA CIDADE

(…)

todos têm uma voz
alta, baixa, aguda, grave
rouca, intensa, suave

todos têm uma voz
só que muitos não a usam
com medo de tudo e todos

e assim deixam que outra
que não sua mas de outro
tome então o seu lugar

e saem por aí dizendo coisas
que na real não acreditam
mas que não tem força de evitar

(…)

_

▪ Timo Berger
(Brasil 🇧🇷 )

 


Gravação de vozes por Maria Azenha

CARTA DA INFÂNCIA


Poesia dita por Fátima Murta

 

 

Amigo Luar:

Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te oiço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.

_

▪ Carlos de Oliveira
( Portugal 🇵🇹 )
in “Trabalho Poético” Sá da Costa, 1998 (3ª ed.)

PARA O NELSON, QUE NUNCA LERÁ ESTE POEMA

Alto, esguio, talvez uns trinta anos,
completamente cego,
resiste à indiferença das ruas.
Agora, acompanhado por um jovem,
caminha neste mundo sombrio.

A minha voz,
saída dos escombros de uma guerra fria,
ouviu-se desolada e triste:
bom dia.

Passámos alguns segundos quietos
a ouvir o som um do outro.

Quem éramos afinal neste encontro?
Que armas trazíamos?
Quem era o que matava e o que foi morto?

-pouco mais haveria a dizer –

Ouviu-se, no fim da rua :
Adeus! Até à próxima.

Um cão – de um castanho escuro –
parecia não se importar muito.

_

▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in ” A casa da memória”