NO DESERTO

No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos, e comia…

Disse-lhe: É bom, amigo?
É amargo – respondeu –,
amargo,
mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração.

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▪ Stephen Crane
( E.U.A. 🇺🇲 )
Mudado para português por _ Herberto Helder

ELES DIRÃO

Da minha cidade, o pior que os homens dirão é isto:
Você tirou as crianças do sol e do orvalho,
E dos brilhos que brincavam na grama sob o grande céu,
E da chuva imprudente; você os coloca entre paredes
Para trabalhar, quebrados e sufocados, por pão e salário,
Para comerem poeira em suas gargantas e morrerem de coração vazio
Por um punhado de salário em algumas noites de sábado.

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▪ Carl Sandburg
(Estados Unidos 🇺🇸)

O SENHOR DEGAS ENSINA ARTE E CIÊNCIA NA ESCOLA INTERMEDIÁRIA DE DURFEE – DETROIT, 1942

Ele fez uma linha no quadro,
um traço negro da direita para a esquerda
a descer e recuou
para perguntar, sem olhar para ninguém em particular
como de costume: “O que é que eu fiz?”
Do fundo da sala Freddie
exclamou: “Quebrou um pedaço
de giz.” O senhor Degas não sorriu.
“O que é que eu fiz?” repetiu.
Os alunos mais inteligentes
concentraram o olhar nas escrivaninhas
excepto Gertrude Bimmler, que levantou
a mão antes de falar. “Senhor Degas,
o senhor criou a hipotenusa
de um triângulo isósceles.” Degas meditou.
Toda a gente sabia que Gertrude não podia
estar errada. “É possível,”
precisou ainda Louis Warshowsky,
“que tenha começado a representar
o telhado de um celeiro.” Lembro-me
de que passavam exactamente vinte das
onze, e eu pensei que na pior das hipóteses
isto continuaria por mais quarenta
minutos. Era o inicio de Abril,
a neve não tinha ainda derretido nos
pátios do recreio, os olmos e o ácer
bordejando passeios rachados
tremiam com o vento novo, e ocorreu-me
que antes que me desse conta estaria
a caminho da loja de doces
para comprar um Milky Way. O senhor Degas
enrugou os lábios e a aula
acalmou até que o braço longo
do relógio se moveu para o vinte e um
como que em cumplicidade com Gertrude,
que acrescentara confidente: “O senhor começou
a separar o escuro do escuro.”
Voltei-me a pedir ajuda mas agora as
árvores resistiam e tremiam e eu
percebi que isto podia durar eternamente.

 

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▪ Philip Levine
( E.U.A. 🇺🇲 )
Mudado para português por João Luís Barreto Guimarães

QUEM SOU EU ?

A minha cabeça bate contra as estrelas.
Os meus pés estão nos cumes dos montes.
As pontas dos meus dedos estão nos vales e litorais da vida universal.
Na espuma sonora das coisas primeiras estico as mãos
e brinco com os seixos do destino.
Fui ao inferno e voltei várias vezes.
Conheço bem o céu, pois conversei com Deus.
Chapinho no sangue e nas entranhas do terrível.
Conheço o arrebatado assomo da beleza
E a revolta maravilhosa do homem diante de todos os letreiros
a dizer “Não Entrar

O meu nome é Verdade e sou o prisioneiro mais esquivo
do universo.

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▪ Carl Sandburg
(Estados Unidos 🇺🇸)
Mudado para português por Vasco Gato

O MESTRE

Onde o poeta pára, o poema
começa. O poema só pede
que o poeta saia do caminho.

O poema se esvazia
para se preencher.

O poema está mais perto do poeta
quando o poeta lamenta
que ele sumiu para sempre.

Quando poeta desaparece
o poema se torna visível.

Que pode o poema escolher
de melhor para o poeta?
Escolherá que o poeta
não escolha por si.

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▪ Donald Hall
(EUA 🇺🇲 )
Mudado para português do brasil por António Cícero

A CRIANÇA OLHA PELA JANELA

A criança olha pela janela para o celeiro vazio.
A mãe senta-se no telhado e acena para ela.
A avó canta para o fogão maravilhoso.

A criança guardou o seu Pequeno Fogão Marvel
porque a avó dela está a fazer pão verdadeiro.
A criança olha pela janela para o celeiro vazio.

As duas lá dentro estão a preparar o jantar para três.
(Se a mãe descer do telhado.)
A avó canta para o fogão maravilhoso

uma música sobre uma mãe em algum telhado
(provavelmente a mãe que é filha dela).
A criança olha pela janela para o celeiro vazio.

A criança cantarola enquanto fica de pé
a inspecionar o celeiro e a ouvir como
a avó canta para o fogão maravilhoso.

Ela desenhou pelo menos meia dúzia de celeiros hoje.
Ela deixa de cantarolar e canta a sua própria música.
Ela olha para a mãe no topo do celeiro vazio enquanto
a avó canta para maravilhar o fogão.

 

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▪ Kimiko Hahn
( E.U.A. 🇺🇲 )