SEM CABEÇA

Até mesmo a manhã custa a perceber.
É como se alguém me decepasse a cabeça a meio da noite
e as horas se enganassem à volta do meu pescoço.

É fácil retratar uma degolação poética
em tempos de barbárie
tecnológica.

Afinal acordei no meio de gente ainda com cabeça
e eu sou aquele avô que os media
sempre ensinam.

Desgraçados dos tais
vestidos de amarelo para melhor serem vistos
com a faca viva encostada à garganta.

Comecei com a manhã imprecisa
meio cego a procurar um verso meu no meio da bruma
com a delicada nervosa faca de papel.

O mundo é um globo de gente ajoelhada,
de cabeças suspensas. E eu ao sair, só, do sono,
decapito o poema.

 

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▪ Armando Silva Carvalho
( Portugal 🇵🇹 )

A CHUVA, OS TRABALHOS, OS DIAS.

Foi tudo o que aprendi: límpida e generosa é a chuva.
Molha a delicada cambraia dos senhores e os andrajos do
camponês,
inunda os lábios gretados dos amantes,
lava as mãos impunes dos cobardes,
a folha caduca da perene não distingue.
Poupa ao lavrador o trabalho e a despesa de regar os pomares.
Com um pouco de sorte e de espanto
também este ano
abundarão as sacas de laranjas e de romãs
na tua arrecadação.

 

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▪ Luís Filpe Parrado
( Portugal 🇵🇹 )

in “Roma Não Perdoa a Traidores”

SOM

Nem sequer é música isto que ouvimos,
é um arrastar de pés, de pedras, de pás que
escavam uma casa de cinzas,
são degraus que descemos,
martelando surdamente,
esmagando pétalas, insectos, cristais,
é um trabalho de facas no trono das acácias,
dos cedros,
facas que atravessaram os pulsos e o coração,
é um rangido de portas,
janelas que batem,
o vento nos ramos,
nas folhas quebradas do Outono,
não, nem sequer é música isto que ouvimos.

 

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▪ José Agostinho Baptista
( Portugal 🇵🇹 )
in “Anjos Caídos”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003

CORVO GIGANTE

Na cidade existe um único pássaro
que grita.

Tudo se esboroa num momento
de silêncio.

Ele fica só
e chama as coisas pelos nomes
o mármore as pedras o cimento
a água os canos.

Tudo aquilo tem um sabor
que se estende pelo mar
como um corvo gigante.

É um pássaro lilás
que rouba as nogueiras
e desespera.

 


▪ Jaime Rocha
( Portugal 🇵🇹 )
in “A perfeição das coisas”, Editorial Caminho, Lisboa, 1988

A CASA GRANDE

Estamos a sair da casa grande.
Malas feitas, eu já me despedi
de toda a gente,
falta só ir à cozinha
dar um último abraço.

A casa grande.
Por que vamos embora?
Igual à vida,
um sítio de passagem?
Na vida não se fica,
é só viagem…

Enquanto digo adeus
trazem como oferenda
uma taça de vidro
com morangos
polvilhados de açúcar.
Escolho alguns e chega
entretanto um dos meus filhos
a quem também são dados
em partilha.

Comemos só
um ou outro morango
a taça ainda fica cheia.

Os morangos:
fruto do coração?
Fruto vermelho
como o sangue da vida?
A vida partilhada
na hora da despedida?

 

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▪ Yvette K. Centeno
( Portugal 🇵🇹 )
Poema inédito publicado com autorização prévia da autora.

SOU DE VIDRO

Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita

 

▪ Lídia Jorge
( Portugal 🇵🇹 )

PEQUENOS VIDROS AZUIS

Cobria a mesa com velas acesas
a macerada tarde do mês último –
e escrevia em rectângulo
de papel bem aparado,

depois rasgava. Todos o podiam ver
sentado a essa mesa no cimo do parque,
a casa,
o vidro azul da janela

canal de água a par do caminho. Foi
quando surgiu o levadeiro
– as velas de um sopro apagou –
caía a água na extensão da rocha

no perfume magoado de Dezembro
entre o rumor do vento
a sombra não se movia nem se prendia ao
traço do corpo, não imitava os gestos

em doce modo apagou todas as velas
ao que escrevia sem qualquer sentido
ao muro branco do nevoeiro
a última folha da faia rubra prendia a

vazia escrita do desejo, seguia-o
com o passo de um ladrão e o tremor
de quem falta a secreto juramento.

 

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▪ João Miguel Fernandes Jorge
( Portugal 🇵🇹 )
in “Lagoeiros”, Relógio D’Água, Lisboa, 2011