E EXISTE MESMO UM CIRCO NO CÉU?

E existe mesmo um circo no céu?
Mamãe diz que sim.
Papai ri, teve más experiências com Deus.
Se Deus fosse Deus, desceria para nos ajudar, diz.
Mas por que ele deveria descer se, afinal de contas, nós viajaremos até ele mais tarde?
Seja como for, os homens acreditam menos em Deus do que as mulheres e as crianças, por causa da concorrência. Meu pai não quer que Deus também seja meu pai.

 


▪ Aglaja Veteranyi
( Roménia 🇹🇩 )

Mudado para português do brasil por  Fabiana Macchi

CENA FINAL

deixei a porta entreaberta
sou um animal que não se resigna a morrer

a eternidade é a escura dobradiça que cede
um pequeno ruido na noite da carne

sou a ilha que avança sustentada pela morte
ou uma cidade ferozmente cercada pela vida

ou talvez não sou nada
somente a insônia e a indiferença brilhante dos astros

deserto destino
inexorável o sol dos vivos se levanta
reconheço essa porta
não há outra

gelo primaveral
e um espinho de sangue
no olho da rosa.

 

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▪ Blanca Varela
( Peru 🇵🇪 )
Mudado para português do brasil por _ Tiago Fabris Rendelli

CONTA-ME OUTRA VEZ

Conta-mo outra vez: é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repete-me, uma vez mais, que o par
do conto foi feliz até à morte,
que ela não lhe foi infiel, que ele nem sequer
pensou em enganá-la. E não te esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuavam cada noite a beijar-se.
Conta-mo mil vezes, se faz favor:
é a história mais bela que conheço.

 

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▪ Amalia Bautista
( Espanha 🇪🇸 )
Mudado para português do brasil por Nelson Santander

A POETA QUE DESAPARECEU

Será que ela se deitou para dormir
entre flores brancas?
Será que ela era uma fonte sussurrante
será que ela era um passarinho no galho?
Será que ela estava perdida na floresta
de palavras em itálico?
Quiçá se transformou
num poema lá na floresta?

 


▪ Ingibjörg Haraldsdóttir
( Islândia 🇮🇸 )
Mudado para português do Brasil por Francesca Cricelli

*

SKÁLDKONAN SEM HVARF

 

Var hún lögst til svefns
meðal blómanna hvítu?
Var hún hvíslandi lind
var hún smáfugl á grein?
Var hún týnd í skógi
af skáletruðum orðum?
Var hún ef til vill orðin
að ljóði úti í skógi?

 


▪ Ingibjörg Haraldsdóttir
( Islândia 🇮🇸 )

NO FINAL

No final, muito poucas são as palavras
que realmente nos magoam, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que tocam nossos corações, e ainda
menos as que o fazem por muito tempo.
No final, são pouquíssimas as coisas
que realmente importam na vida:
ser capaz de amar alguém, ser amado
e não morrer antes de nossos filhos.

 

_
▪ Amalia Bautista
( Espanha 🇪🇸 )
Mudado para português do brasil por Nelson Santander

FRAGMENTOS PARA DOMINAR O SILÊNCIO

I.

As forças da linguagem são as damas solitárias, desoladas, que cantam através de minha voz que escuto à distância. E longe, na negra areia, jaz uma criança densa de música ancestral. Onde a verdadeira morte? Quis iluminar-me à luz de minha falta de luz. Os ramos morrem na memória. A jacente aninha em mim com sua máscara de loba. A que não pode mais e implorou chamas e ardemos.

II.

Quando voa o telhado da casa da linguagem e as palavras não a protegem, eu falo.

As damas de vermelho se extraviaram dentro de suas máscaras embora regressem para soluçar entre flores.

Não é muda a morte. Escuto o canto dos enlutados selar as rachaduras do silêncio. Escuto teu dulcíssimo pranto florescer meu silêncio triste.

III.

A morte restituiu ao silêncio seu prestígio enfeitiçante. E eu não direi meu poema e eu hei de dizê-lo. Mesmo que o poema (aqui, agora) não tenha sentido, não tenha destino.

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▪ Alejandra Pizarnik
( Argentina 🇦🇷 )

O quarto do suicida

Vocês devem achar que o quarto estava vazio.
Pois havia ali três cadeiras de encosto firme.
Uma boa lâmpada contra a escuridão.
Uma mesinha, e sobre a mesinha uma carteira, jornais.
Um Buda alegre, um Jesus aflito.
Sete elefantes para dar sorte, e na gaveta um caderninho.
Você acha que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Pois lá estava o trompete consolador nas mãos negras.
Saskia com uma flor cordial.
Alegria, centelha divina.
Na estante Ulisses num sono reparador
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas,
seus nomes inscritos em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Ao lado, também os políticos perfilados.

Não parecia que o quarto fosse
sem saída, pelo menos pela porta
nem sem vista, pelo menos pela janela.
Os óculos para longe largados no parapeito.
Uma mosca zunindo, ou seja, ainda viva.
Devem achar que ao menos a carta explicasse algo.
E se eu lhes disser que não havia carta –
éramos tantos os amigos e coubemos todos
no envelope vazio apoiado no lado do corpo.

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▪ Wisława Szymborska
( Polónia 🇵🇱 )
Mudado para português do brasil por Regina Przybycien