ANTES DO CLARÃO

Vestida de água, lavam-lhe o corpo,
mãos lentas, líquidas,
bordando segredos no silêncio da solidão.
O vestido, desmaiado na terra,
conversa com as pedras.
Uma pomba,num gesto de alheamento
entre flores brancas e amarelas,
pousa no chão.

O céu,sem tempo,espera
quieto.

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )

POEMA DO COMEÇO

Eu num camelo a atravessar o deserto com um ombro franjado de túmulos numa mão muito aberta

Eu num barco a remos a atravessar a janela da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de escamas

Eu na praia um vento de agulhas com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia

Eu na noite com um objecto estranho na algibeira – trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de musgo

 

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▪ António Maria Lisboa
( Portugal 🇵🇹 )

 

A MORTE NÃO TERÁ NENHUM DOMÍNIO

E a morte não terá nenhum domínio.
Nus, os mortos serão um só
Como o homem ao vento e a lua do poente;
Quando descarnados os ossos limpos se forem,
Pés e cotovelos serão visitados pelas estrelas;
Embora enlouqueçam, serão lúcidos,
Embora no mar se afundem, ressurgirão;
Embora se percam os amantes, não se perderá o amor:
E a morte não terá nenhum domínio.

E a morte não terá nenhum domínio.
Sob as tortuosidades do mar,
Os que aí jazem não morrerão tortuosos;
Retorcidos em suplícios ao rasgar dos nervos,
Amarrados a uma roda, nem assim rebentarão;
Nas suas mãos a fé fender-se-á sem apelo
E os males do unicórnio serão o seu atropelo;
Cindidos de uma ponta à outra não irão quebrar;
E a morte não terá nenhum domínio.

E a morte não terá nenhum domínio.
Não hão de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
Nem o clamor das vagas voltará a eclodir nas praias;
Onde uma flor de aurora desabrochou não mais
Erguerá a corola aos golpes de chuva;
Embora estejam loucas e mortas como pregos,
Cabeças rasgam caminho através das margaridas,
Irrompem ao sol até o sol ser derrotado,
E a morte não terá nenhum domínio.

 

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▪ Dylan Thomas
(Estados Unidos 🇺🇸)
Mudado para português por Frederico Pedreira

O amor já não é o que era

O amor já não é o que era
concluiu apressadamente o senhor Couto
vindo à tona do sonho de que o poema é feito.
O amor já não é o que era
repete-me a árvore roçagando
horas e horas, entre as folhas perdendo
um qualquer coisa que se juntasse a ela
e a ela acrescentasse uma qualquer lembrança
do que fosse o amor quando era o que era.

Sabe o senhor Couto que não ser o que foi
é tão fatal com ele como com o sentimento
de que avança a falar como se o sentisse?

 

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▪ Pedro Tamen
( Portugal 🇵🇹 )
in “Memória Indescritível”, Editora Gótica, Lisboa, 2000

A CASA ESTAVA SILENCIOSA E O MUNDO ESTAVA CALMO

A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão

Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página,

A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem

A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.

O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito:
Era a perfeição no seu acesso à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo
No qual não há outro sentido, a própria verdade

Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.

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▪ Wallace Stevens
(U.S.A. 🇺🇲)
Mudado para português por David Mourão-Ferreira

ARTE POÉTICA

Entre tantos ofícios, exerço este que não é meu,
como um amo implacável
me obriga a trabalhar de dia, de noite,
com dor, com amor,
debaixo de chuva, na catástrofe,
quando se abrem os braços da ternura ou da alma,
quando a doença submerge as mãos

A este ofício me obrigam as dores alheias,
as lágrimas, os lenços acenantes,
as promessas no meio do outono ou do fogo,
os beijos do encontro, os beijos do adeus,
tudo me obriga a trabalhar com as palavras, com o sangue.

Nunca fui o dono das minhas cinzas, meus versos,
rostos obscuros os escrevem como disparar contra a morte.

 

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▪ Juan Gelman
( Argentina 🇦🇷 )