NATAL

Nasceu.
Foi numa cama de folhelho
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroa de baionetas
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

 

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▪ Álvaro Feijó
( Portugal 🇵🇹 )

“Natal” de Álvaro Feijó dito por Mário Viegas

 

LEMBRANÇA DE AMANHÃ

Ficámos nas fotografias todos juntos
(vivos, mortos, tanto faz, sim, todos juntos)
com caras de turistas já cansados
de percorrer cidades invisíveis
à procura das mães. O turismo
é uma forma alegre de orfandade.
Pagar para sofrer, perder países.

Fartos de tirar fotografias, epitáfios
a cores, e felizes por nada compreendermos,
regressamos a casa, já era tempo,
carregados de recordações e desejos
de não voltar a sair,
de nos deixarmos de viagens e histórias,
de não termos de percorrer o mundo
perguntando ao mundo,
com um mapa na mão,
onde estamos, quem falta, aonde vamos.

O caos tem um calendário rigoroso
e o nada, festas para guardar.

Trouxe-te estas fotografias, vê-as.

São uma estranha lembrança da morte.

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▪ Juan Vicente Piqueras
( Espanha 🇪🇸 )

Mudado para português por Manuel Alberto Valente

A PAZ DAS COISAS SELVAGENS

Quando o desespero pelo mundo cresce em mim
e acordo a meio da noite com o mais pequeno som,
com medo do que possa vir a ser a minha vida e a vida dos meus filhos,
vou e deito-me onde o pato-marreco
repousa na sua beleza na água e a garça-real se alimenta.
Penetro na paz das coisas selvagens
que não sobrecarregam as suas vidas com a premeditação da tristeza. Entro na água parada.
e sinto por cima de mim as estrelas cegas durante o dia esperando com a sua luz. Durante algum tempo
descanso na graça do mundo e sou livre.

 
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▪ Wendell Berry
(U.S.A. 🇺🇲)
Mudado para português por _ Jorge Sousa Braga

NINGUÉM MEU AMOR

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos

 

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▪ Sebastião Alba
( Portugal 🇵🇹 )

HÁ SEMPRE UM COMBOIO QUE PARTE

Há sempre um comboio que parte
de algures em qualquer parte do mundo

Há sempre um cais com gente
ansiosa da viagem para a parte incerta

Há sempre um futuro com destino
que a gente do cais não conhece

Dentro deste comboio louco
vou eu em viagem dentro de mim

No cais alguém fica à espera
de um comboio que já partiu

 

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▪ Henrique Risques Pereira
( Portugal 🇵🇹 )

 

CIDADE OCULTA

A cidade está oculta
Todo um rio de cimento
persegue as ruas

Porque agora as horas são mais sólidas
os homens abraçam-se com os filhos ao entardecer
A outra tarde é uma chuva num círculo
abraçando o fogo
Não há imagens
e o mistério deixa-se improvisar

Se houvesse uma mesa
por onde o pássaro gigante vomitasse o ruído
a noite decerto se mostraria
menos receosa

Mas o que se passa não é mais vida
nem pasmo fala-se
Vem uma máquina exterior
mastigar a voz

Depois as estradas numa infinita gravata
sufocam a paisagem guilhotina
de dois horizontes
Pausa para separar os dias do irremediável
A cidade segue oculta

Os dias deixam aquela baba peçonhenta
a roçar a cauda pelas sombras do musgo cortante

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▪ Fernando Lemos
( Portugal 🇵🇹 )